Primeira
Sem o Glamour de uma
garota
Manhã de sábado e estou acordando com o
grito descontrolado da minha tia chamando para alguém abrir o portão. Maldita é
essa entrada de minha casa! Tinha essa entrada ser logo próxima à janela de meu
quarto?
O silêncio voltou a reinar, após eu
ouvir o cadeado ser retirado do portão, seguido do arranhar das correntes pelo
ferro dele.
Estou tão perdida em pensamentos que não
consigo imaginar que horas são. Apenas quero concentrar-me na noite que acabara
de passar. A social esteve muito boa ontem. Lá somente tinha gatinho e a música
eletrônica estava de primeira. Sem falar que o DJ era lindo e único. Porém,
todas as garotas conseguiram o deixar esnobe por causa das cantadas horrorosas
delas sobre o coitado.
Sei que tenho que abrir os olhos, pois
não demora e a minha mãe me chamará para passear com a Kika. Ela é uma vira
lata muito fofa que temos.
Mas, hoje não quero ir. Meu corpo parece que
está pesando uma tonelada e meus olhos estão grudados de tanto sono.
Viro-me de um lado para o outro, a fim
de mover os músculos que estão sem vontade de contração. Logo após, resolvo
admirar-me no espelho. Quero ver se estou com muita cara de acabada para o novo
dia.
Primeiro, abro um olho e com a mínima
vontade abro o outro. Morri! Quero gritar, mas não consigo. Estou paralisada
com a imagem aterrorizante que acabei de ver no espelho. Esse não é o rosto de
uma adolescente de 15 anos que está à minha frente, e sim, a figura de um zumbi
em crescimento. Quero chorar, reclamar por causa do que vejo refletido no
espelho.
Como estou desesperada. Não quero mais
ver o sol, não quero ver ninguém. Somente necessito ficar em meu quarto escuro.
Minha cabeça, contudo, começa a
fervilhar de pensamentos. “E agora, o que
irei fazer? Como irei à escola? Todos, falarão: O que atropelou aquela garota? Era tão bonitinha e agora está dando
medo de tão feia.”
Enrolo-me com muita insegurança no
lençol e escondo minha cabeça debaixo do travesseiro. Nesse momento, uma
lágrima consegue fugir do meu olho esquerdo acompanhada de tais tormentas
mentais que saem de meus lábios trêmulos:
- Agora meu namorado não vai mais me
querer. Ah, Deus! Por que estou sendo castigada assim?
Imersa nesse imenso desespero e tendo as
lágrimas como companhia, eu somente quero morrer. Ninguém imagina como estou
agora. O meu olho direito está todo inchado e a pálpebra está meio que caída
por cima dele.
Após terem já se passado longos minutos
de desespero, resolvo levantar e ligar para a minha amiga. Eu preciso de alguém
que me entenda e que me acalme.
Estou discando com muita dificuldade e
essa chamada parece durar uma eternidade.
Alô! Por favor, amiga. Venha até aqui. É
urgente. É caso de beleza ou morte. Estou morrendo no meu quarto. Basta chegar
e entrar.
- Já estou indo! Vou correndo. Beijos!
Como a curiosidade das pessoas é grande.
Minha amiga nem perguntou o que tinha acontecido comigo e logo vem correndo, a
fim de ver qual é a minha desgraça.
Três toques na porta. E o ranger da
dobradiça rompe o silêncio que naquele momento era meu melhor amigo. Agora
minha amiga me verá com a alma exposta. Justo eu, a perfeitinha do
colégio. “Como está doendo a minha alma”.
Não consigo tirar o travesseiro da frente
do meu rosto. Tenho receio que ela julgue o monstro de amiga que agora ela tem.
- Estou aqui. O que foi? Qual é o
babado?
Exibi, enfim, o meu rosto e como não
quero ver a expressão de piedade dela. Somente tenho coragem de abrir os olhos
após ouvir o romper dos meus tímpanos, com a estridente gargalhada dela.
Com uma cara de deboche, ela examina o
meu rosto. Eu não consigo falar qualquer palavra. Meus lábios pareciam estar
colados. No entanto, de repente, começo a rir e a chorar ao mesmo tempo.
- Você está com uma alergia e tanto,
amiga. Olha, tenho uma péssima notícia. Está com alergia à maquiagem e terá que
deixar de usá-las.
Essas palavras são as piores já ouvidas
por mim, em toda a minha existência. Como assim? Eu não poder usar mais meus
batons, blush. Imaginem estes meus olhos azuis sem as máscaras de cílios. Eu
jamais conformaria com aquelas palavras. Agora eu serei chamada de a garota
apagadinha. Todos na balada iriam indicar-me como referência, dizendo bem assim:
“aquela garota sem brilho e sem o glamour
de mulher”.
Disparo a chorar novamente, como quem
perde tudo na vida, e minha amiga me abraça, dizendo:
-
Calma,
minha amiga! Nada como um antialérgico para ajudar a acabar com essa aparência.
Não, ela não entende. Não era mais o meu
rosto que me incomodava naquele momento. Mas sim, o fato de não poder usar mais
a minha querida maquiagem. Pois, mesmo transfigurada na aparência, nada como
uma base ou umas sombras, não resolvessem. Mas, a vida estava tão cruel comigo,
que neste momento, nem isso estará beneficiando-me.
Minha amiga, vendo a minha dor, se
aproxima com um pequeno espelho. Ali vejo meus olhos inchados, minha pele da
bochecha descamando igual a uma cobra trocando de pele. Os meus lábios estão de
dar inveja a qualquer mulher que desejava fazer implante de Botox. Porém, o pior de tudo é a tal
coceira desgraçada que estou nos olhos.
O tempo nessa manhã disparava em alta
velocidade e minha amiga teve que ir embora. Enquanto isso, eu fiquei trancada
no quarto. Somente me olhava e ao mesmo tempo, despedia de meu amigo querido
estojo de maquiagem. Era o fim de nossa relação íntima como de costume. Era
hora de despedir de cada peça. Sinto, portanto, que estou despedindo de parte
de mim. Agora a minha vida ficará sem cor, sem brilho e nenhum destaque.
Concluo, portanto, de como é difícil despedirmos daquilo que mais amamos.
Adormeço sufocada com aquela dor imensa
em meu peito. Apenas resolvo acordar, pois a minha mãe está me chamando para
tomar um remédio.
Já perceberam como as mães são as
salvadoras de nossas vidas? Elas, além de nos trazer a este mundo, ainda têm a
solução para todos os nossos problemas.
- O que foi com esse rosto. Está meio
diferente da filha que conheço.
-Mãe!
O que eu faço agora? Viu como a sua filha está defeituosa e apagada?
Ela, com um sorriso angelical e voz
terna, disse:
- Fica tranquila, filha! Vou levá-la a
um dermatologista e sei que uma maquiagem de melhor qualidade irá resolver esse
problema.
- Sério? Posso continuar sendo uma
garota cheia de glamour. Nossa, que susto eu tive da vida hoje.
- Fica tranquila, filha minha.
Depois de ouvir isso, sorri aliviada e
vi que naquele momento todo o meu dilema seria resolvido. Voltei a sorrir.
Graças à minha mãe.
Segunda
Mico de festa
Meus 15 anos foi tão especial e marcante
como de toda garota que conheço. Passamos os 12 últimos meses que antecede a
data do aniversário, somente sonhando com a nossa festa que com certeza seria
maravilhosa e perfeita.
Quando o dia se aproximou, eu já estava
muito ansiosa. Mas, o que estava me apavorando mesmo, naquele momento, era
imensa tranquilidade de minha mãe. A sensação que todos percebiam era de que
não teria uma festa com tamanha proporção naquela casa. Cheguei também a pensar
nisso, pois todas as vezes que eu questionava sobre os preparativos da festa, a
resposta era sempre a mesma de minha mãe. Ela me pedia calma, pois na hora
certa, tudo seria resolvido. Aquilo me matava, pois eu queria ver a minha mãe
se descabelando como a mim, pelo fato da aproximação da festa.
Então, chegou o grande sábado. Entrei no
salão e lá estava tudo tão brilhante e singelo. Eu sentia que não estava
acreditando que aquele momento, enfim, tinha chegado. Logo, eu estava vivendo
minha tão sonhada festa de 15 anos.
Rapidamente os parentes, amigos e “amigas
invejosas”, aos poucos iam passando pelo salão e me cumprimentando. Devido a
certas pessoas naquele meu ambiente, pude constatar que, numa festa, nem sempre
temos o direito de convidar somente as pessoas que nos são agradáveis. Falo
isso, porque as tias, irmãs e até nossa mãe sempre falam: “Temos que chamar a filha de fulana de tal porque somos grandes amigas,
senão vai ficar chateada comigo se não a convidarmos. Temos também que convidar
todas as minhas amigas da igreja. Se elas souberem que teve a sua festa, pode
ter certeza que elas vão reclamar comigo que não foram chamadas”.
Até a sua irmã pirralha se sente no direito de
convidar as amigas dela. Conclui-se, com isso, que os preparos de uma festa são
tão marcantes quanto à própria festa.
As horas vão se passando e a festa vai
rolando num ritmo frenético.
Na pista, a galera já tirou o salto e logo
aquela pompa toda de início, já não mais existe. O que está no comando agora é
o álcool. Ele está se ligando às partes do corpo e deixando o cérebro
encharcado e sem oxigênio. Mas, essa é a festa de minha vida e vamos dançando
sem julgamentos. Vamos, portanto, seguindo a energia da música sem se importar
com o controle rígido do corpo.
Por mais que acabei de comentar sobre o
descontrole das pessoas sobre o efeito do álcool, não é isso que mais me intriga
nelas. A inocência e as atitudes das crianças me deixam, às vezes, muito
assustada. Falo isso, pois como tudo que vivi em minha festa, tem um episódio que
será bem marcante. O fato traumático foi devido à atitude de uma menina
amiguinha pirralha de minha irmã.
O babado é o seguinte, mas vou contar
como se eu estive vivendo aqueles momentos. Será como se eu estivesse agora na
festa.
Estava
exausta de tanto dançar e refazendo, ao mesmo tempo, o fato que acabara de
acontecer. A traquinagem dela ocorreu dentro de frações de segundo, mas sei que
ficarão marcados para sempre em minhas memórias.
Não queria pensar em nada que me
aborrecesse e desejei logo voltar para a pista, mas este mico me travou e não
saía de mim.
Estou agora, portanto, perguntando-me,
seguidamente, sobre como posso ter passado por isso em minha festa de 15 anos.
Será um capricho do destino para lembrar que, mesmo nos momentos felizes,
podemos sofrer algum ato de descontentamento? Por que logo agora essa agonia?
Por que logo, hoje?
Minhas amigas estão me observando e
devem ter percebido minha desolação em minha festa de 15 anos. Elas se
aproximam e me puxam para levantar da cadeira. Logo querem saber o que está
acontecendo comigo. Após um respirar fundo, resolvi chamá-las para um canto
mais tranquilo, e conto todo o ocorrido:
- A pirralha, amiga da minha irmã,
simplesmente chegou até a mim e sorrindo, deu um puxão no meu vestido para
baixo. Agora já imaginaram o que pode ter acontecido. Perceberam que estou
usando um tomara que caia? Então, o resto vocês já sabem.
- Nossa, amiga! Alguém viu?
- Apenas todos os homens que estavam
sentados lá naquela mesa que está na entrada à direita do salão. Todos eles são
amigos de meu pai. Que mico!
Depois desse babado divulgado para elas,
acabei sentindo-me pior. Tive, portanto, que ficar aguentando as “piadinhas” de
todas elas, que riam e comentavam:
- Relaxa, amiga! Você está desabrochando
para o mundo mesmo. Agora não vai ficar mais constrangida quando estiver nua
para alguém.
- Bem animador! - eu dizia.
- Somente viram o que é bonito. Vamos
dançar e esquece isso. Amanhã nem vai lembrar mais dessa história. É sua festa!
As horas não passam e apenas queria ir
para a minha casa. Mas, ao mesmo tempo, estava desejando com toda força, que
aqueles homens nunca me encontrem depois da festa.
Senão,
até sei os pensamentos deles qual seriam ao me verem:
“Olha se não é aquela
garota, filha de meu amigão, que deixou os seios à mostra”.
Sei que vou ficar um bom tempo sentindo
vergonha de parte de minha festa de 15 anos. Vejo, portanto, o que deveria ter
ficado marcado em mim, é a alegria dessa única festa especial na vida de uma
garota. Mas, infelizmente, isso não aconteceu. Fiquei com um trauma por causa de
uma pirralha sem noção.
Terceira
Amor, destino. Destino, amor
Toda semana é a mesma coisa. Chega
domingo à noite e bate aquele desânimo. Acontece isso, porque já sei que a
correria dos estudos começará no dia seguinte. Somente quem sabe o que é se
preparar para um vestibular tão concorrido como é o de medicina, é capaz de me
entender.
Amanheceu e o despertador do celular
grita desesperado mais de três vezes. Esse curto tempo, é o que eu levo para
conseguir abrir os olhos e ao mesmo tempo, processar o que está acontecendo a
minha volta. Depois, conto até cinquenta e aí, começo a esboçar um pequeno
movimento com meu corpo. Mas logo, já começa a pior disputa que ocorre entre o
sono e o meu consciente. Este diz o tempo todo que tenho que ir para aula. Contudo,
o pior, são os olhos que só querem mais um pouquinho de descanso. Mas a voz
incansável do consciente continua dizendo: ”Acelera
porque tem que estar no ponto de ônibus que passará às 7h:15hmin”.
Ter que ouvir isso
todos os dias dentro de nossa cabeça, é a maior tormenta que uma estudante pode
ter.
Não sei o motivo pelo qual, das aulas
começarem tão cedo. E também, não concordo com o fato de sair do colégio ao
meio dia. Nessa hora, já deveríamos estar em casa, pois a fome já está
corroendo todo nosso estômago, juntamente com o nosso raciocínio. Devido a
isso, adeus a nossa concentração nos estudos.
- Olha o ônibus, filha! Está na hora de
se levantar!
Esta é a minha mãe quebrando a rotina
dos meus pensamentos matinais rebeldes. Quase todos os dias, é isso que escuto
logo cedo.
Sempre tento levantar da cama, mas o
travesseiro insiste em grudar na minha cabeça. E o lençol? Este já é a minha
segunda pele, pois assim que acordo ele não sai de mim. Ter que tirar ele causa
uma dor horrível. Então, muitas vezes, para me livra dessa dor, ele sai me
acompanhando pela casa toda. Também faço isso, porque ele vive me pedindo com sua
voz sonolenta para não deixá-lo só. E se não faço isso, logo escuto sua
chantagem através, dos murmúrios: “Até esse
momento eu estava dividindo e protegendo os seus sonhos por uma deliciosa
noite. Sua cruel ingrata!”
Enfim, ter que romper essa ligação que é quase
que um triângulo amoroso entre mim e o lençol, será necessário uma sessão psiquiátrica.
Nesse enrolar todo, acabo sempre
atrasada e mal consigo tomar um café da manhã. Tudo acaba sendo uma correria
total. Somente mesmo os gritos de minha mãe dizendo que estou atrasada e o
desespero para terminar de fazer tudo a tempo, para conseguir sair no “horário
certo” para a escola.
- Mãe, você viu minha folha com
exercícios de história? Alguém viu o meu estojo? Tinha uma folha aqui com
exercícios de matemática nessa mesa?
Sempre são assim todas as minhas
manhãs durante a semana. Portanto, logo que tudo já está na mochila, dou um beijo
rápido em minha mãe e não vejo mais ninguém à minha frente. Quero assim, é ver
as horas e fazer o cálculo da velocidade que meus passos precisarão ter, até
chegar ao ponto de ônibus.
Estar à espera de alguma coisa ou alguém
é uma atitude na qual, não gostamos muito. Isso causa agonia, desconforto e
ansiedade. Quando estamos nessa situação, já começamos a olhar e observar tudo
a nossa volta, a fim de que a espera seja menos tediosa. Começo logo, pela
minha roupa a fim de ver se ela está de acordo com uma boa imagem de uma garota.
Depois, começo a observar aos demais que estão no ponto de ônibus. E ao fazer
isso nesse exato momento, notei que tem alguém com um perfume masculino e muito
gostoso. Olhei e vi que pertence a um gatinho que está do meu lado esquerdo.
Cheguei com tanta pressa que passei por ele e nem o notei.
Os segundos vão se passando e começo a
ser atormentada com esta presença masculina. Já na minha primeira observação,
notei que era lindo. Que é, portanto, o meu número.
Quero ficar olhando para ele, mas sei
que é uma péssima ideia. Queria saber se ele me notou ao me virar para
observá-lo. Vi que ele também me olhou, mas será que me registrou? Eu o notei
tanto que pude perceber que tinha olhos cor de mel. Olhei para ele pela segunda
vez de forma disfarçada e fiquei meio que em transe. Somente acordei dele,
porque o garoto sorriu e me cumprimentou.
Como é bom logo cedo ter uma visão de um
deus grego. Quando isso ocorre, o nosso dia fica mais vibrante.
Às vezes, fico sem jeito perto de uma
presença masculina. E nesta hora eu estava desnorteada ao extremo, que até
esqueci que estava esperando “bus” para a escola. O garoto é tão bonito que
quero logo levá-lo para casa. Quero-o somente para mim.
Nessa hora, me questiono sobre o fato de
querer, desejar quem eu nem conheço. Nem ao menos sei nome dele, telefone ou se
tem chulé, namorada e emprego. Mas, apesar disso, sei uma coisa bem particular
dele, o seu cheiro.
Rezo e começo a torcer para que ele entre
no mesmo ônibus que o meu. Como não sei por quanto tempo minha estadia nesse
ponto durará, quero, portanto curtir esses momentos somente o observando. Logo,
penso que estou maluca com tudo isso. Mas a maluquice maior é querer saber se
ele ficou mexido por mim, o quanto estou por ele.
Eu queria poder tocar em suas mãos e
segurar o seu braço bem forte. Depois pedir para que não fosse embora. Desejo
poder olhar em seus olhos e perguntar em que vida nós nos encontramos antes.
Estes pensamentos acabaram deixando
minha respiração ofegante e as mãos muito geladas. E para melhorar desse
descompasso corporal, resolvi virar às costas para ele. Não quero que perceba o
meu descontrole. Mas tenho a impressão que ele percebeu mesmo assim, pois a
minha inquietude estava exagerada, por isso, resolveu falar comigo:
- Sabe se o ônibus para o centro da
cidade passa por aqui?
Tentei responder de imediato, mas a voz
me abandonou por alguns segundos. Depois meio que sem forças, consegui dizer um
“Sim”.
- Se você está esperando o ônibus que
vai te levar para o colégio, parece que está vindo ali. – ele disse com uma voz
macia e grave.
Queria tanto que ele não tivesse me
informado sobre isso. Eu desejaria que não existisse, naquele momento, nenhum
“bus” e muito menos, escola.
O barulho da porta do ônibus se abrindo à
minha frente foi o pior barulho que já escutei. Logo, questionei o fato de como
um meio de transporte tão comum, teria o direito de atrapalhar o encontro raro
de entre duas almas gêmeas.
Mostrei a carteira de estudante para o
motorista e procurei a primeira janela vaga do lado esquerdo da entrada. Queria
com isso, vê-lo mais um pouco parado naquele ponto de ônibus. Mas, para
surpresa minha, o meu príncipe não estava mais lá. Parece que tinha pegado o
ônibus que vinha logo atrás do meu.
Então, o desânimo e a tristeza tomaram
conta de mim. A vida acabava de ser muito injusta comigo. Senti que aquilo era um
capricho do destino. Ele me dá o amor e depois tira tão rápido e me deixa
apenas com água na boca. O meu amor ficou soluçando em meu peito e eu não tinha
uma forma de consolá-lo.
Resolvi fechar os olhos e tirar um
pequeno cochilo até a escola. Mas, ao acordar-me, queria sentir mais feliz com
a possibilidade de um novo encontro. Afinal, talvez a vida estivesse me dando
um pequeno ensaio da peça principal de numa história de amor. Creio que
brevemente a apresentação real poderá acontecer. Então, nesse momento será
melhor me preparar para ser uma ótima atriz, nessa trama chamada vida.
Quarta
Como eu me vejo
O espelho não somente reflete a imagem
externa de uma garota, como também, toda sua raiva, insegurança e saudade.
Enfim, tudo que temos dentro de nós.
Talvez, se eu comentar essa observação
com certas pessoas, irão dizer que é idiotice de uma garota adolescente. Mas,
desde pequena, vivo observando minha imagem refletida em qualquer tipo de
espelho.
Cresci em um meio onde a minha imagem
estava sempre sendo refletida. Nossa casa era muito grande e minha mãe adorava
colocar espelhos em vários cômodos. Por isso, cresci sempre observando as
mudanças tanto de meu corpo, quanto de todo ambiente sobre o qual, eu estava
inserida.
Minha vida então era muitas vezes,
vivida através de uma imagem refletida e essa rotina estava sendo quebrada.
Percebi que eu estava afastando-me aos
pouco, desses reflexos, nos últimos tempos. Isso acontecia, devido às mudanças
em meu corpo.
Eu ficava vendo os móveis sendo trocados
de lugar. As pessoas envelhecendo ou engordando, o tempo passando enfim, isso
tudo, através de um espelho. Essas mudanças acontecendo com terceiros, é uma
coisa, agora ficar vendo as transformações constantes em nosso corpo, é outra. Às
vezes, não gostamos muito do que vemos em nós.
Tinha dia que queria quebrar todos
aqueles espelhos que havia em minha casa. Não aguentava mais ver meu rosto
cheio de espinhas, nem o peito crescendo. Muito menos as gordurinhas chatas que
apareciam aqui e outra ali.
Minha mãe dizia que era paranoia minha.
Portanto, não tinha nenhuma gordurinha extra na minha barriga. Contudo, não
adiantava ela falar, bastava apenas ver a minha imagem refletida, que lá
estavam os lipídeos acompanhando minha silhueta ainda meio desengonçada.
Entretanto, tinha períodos que eu gostava
de ver o mundo, através dessa visão indiscreta. Quando capitamos com os nossos
olhos algo bem picante, sem sermos notados, é muito engraçado. Como por
exemplo, ver a sua irmã mais velha matando a saudade de seu namorado. Se a
minha mãe visse a cena entre os dois, com certeza, quebraria o espelho. Se não
o fizesse, a minha irmã depois o faria quando descobrisse que foi descoberta.
Ela não aceitaria ter um fofoqueiro indiscreto contando seus segredos para
todos da casa.
Hoje é segunda-feira, e queria que o
mundo parasse e eu não visse a imagem de nada e de ninguém. Nesse momento,
estou me sentindo uma excluída da lei da vida e do corpo. Se eu comentar para
qualquer amiga minha sobre o meu sofrimento, chamar-me-iam de complexada. Mas
para mim, está sendo bem difícil passar por essa fase, porque estou muito diferente
das meninas da minha idade.
Quando estou em alguma festa ou quando
há uma roda de amigas, na hora do recreio, acabo meio que ficando isolada dos
papos. Isto está acontecendo, porque já tenho 13 anos e ainda não menstruei.
Sendo assim, me sinto anormal perto delas. Uma vez que elas já reclamam de cólicas,
“TPM” e outros temas sobre ser moça. A sensação que tenho, é de que sou uma
criança tentando acompanhar as outras que já estão sendo adultas.
Sempre chego a minha casa e me olho no
espelho. Ali, sempre me vejo pela metade. Sou uma menina, com mutações lentas,
para ser mulher. Sou, ao mesmo tempo, uma mulher com restos de criança. Por
isso, meus olhos ficam cheios de lágrimas. A minha esperança é de chegar ao
banheiro e ver que tem um sinal indicando que me tornei moça.
Já fiz até simpatia para isso descer
logo. Mas, nada até agora deu certo. Não vejo a hora, portanto, de ser normal.
O pior é que até a minha prima de onze anos já tem cólicas e eu não.
Falo, reclamo com minha mãe que isso está
me chateando e ela dá risadas da minha cara. E completa dizendo que devo ter
uns parafusos a menos no cérebro. Diz que todas as mulheres gostariam de ficar
livre disso e eu quero logo me ver sangrar.
Passam dias, meses. Portanto, já
completei quatorze anos e nada de ser apta para poder acompanhar a vida alegre
de minhas amigas.
Quando comento que quero ficar sozinha,
elas discordam e dizem que preciso sair e beijar. Contudo, logo penso no fato
de ainda ser uma criança. Então, logo afirmo que nenhum garoto vai querer
namorar uma pirralha.
Acabo marcando para ir ao ginecologista
com minha tia, depois de tanto pedir para ela me levar. Fico ansiosa para a
chegada dessa data. Agora, portanto, serei ajudada por um especialista que me
indicará algum remédio ou algo que eu possa comer para menstruar.
Antes do dia da consulta, acordei
ansiosa e comecei a me arrumar duas horas mais cedo do horário da saída marcada
com mia tia.
Olhei-me no espelho enquanto escovava os
dentes e notei que estava com uma olheira horrível. A sensação era de que tinha
ficado uma semana sem dormir.
Passando pelo corredor a fim de esperar a
minha tia chegar para irmos, tive uma surpresa. Naquele momento, a raiva tomou
conta de toda minha alma, porque vi que a minha mãe mandou colocar um novo
espelho. Ele ficava bem de frente para a porta de meu quarto. Aproximei-me dele
para ver em que parte de minha intimidade estava sendo refletida. Nesse
momento, senti uma leve dor na barriga. Olhei para meu corpo, pelo espelho,
logo vi que a minha calça estava suja de sangue na frente. Gritei pela minha
mãe e corri para o banheiro. Nisso, ela veio apavorada perguntando o que tinha
acontecido. Então eu na maior felicidade do mundo falei:
- Sou normal! Menstruei. O que eu faço?
Depois disso, desmarquei com a médica e
com minha tia, Depois, sai pelas ruas passeando com minha cadelinha.
Eu era a garota mais feliz do mundo.
Estava sentindo uma leve dor e um pouco incomodo pelo absorvente higiênico.
Todavia, isso não importava, pois eu era uma garota completa para a minha
idade.
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